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Devaneios sobre arte e política: considerações a partir de W. Benjamin

As atividades humanas se iniciaram praticamente sem nenhum recurso reprodutivo. Inicialmente os povos mais antigos só possuíam a fundição do bronze e a produção de blocos. Os vasos gregos e as cópias dos monges medievais marcam bem a dificuldade que a humanidade passou para manter certos conhecimentos e histórias a salvo do esquecimento.

Posteriormente veio a xilogravura, a litografia até chegar à invenção da imprensa e do livro, que tornou possível a reprodução de palavras, mas também e o que foi mais impressionante, a de imagens idênticas. Isso até que com a invenção da fotografia sucedeu-se o início de uma revolução sem antecedentes. “Uma vez que olho apreende mais depressa do que a mão desenha, o processo de reprodução de imagens foi tão extraordinariamente acelerado que pode colocar-se a par da fala” (p.3), e assim a reprodução da técnica deu seu primeiro passo em um caminho onde a mão do fazer humano se tornaria cada vez mais dispensável.

Nesse percurso o fim seriam os dias de hoje – por hora – onde cabe a bilhões de humanos, apenas ações respondentes diante de imagens que muitas vezes foram vistas apenas como números por humanos e desenhadas por IAs ou programas automáticos de computador.

No entanto, se nos determos para duas práticas fundamentais: a obra de arte e a fotografia poderemos acompanhar a discussão levantada por Walter Benjamin, em “A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica” (1955) e levantar algumas questões sobre o fazer e experienciar da arte nos dias de hoje.


A Obra de Arte, Autenticidade e Aura

Os pontos definidores da Obra de Arte para Benjamin são: autenticidade e aura. Apresentar esses elementos traz mais do que uma boa definição ampla de obra de arte, como também a coloca em um contexto de reflexão sobre suas origens e atualidades.

A autenticidade trata do aqui e o agora da produção. Somente compreendendo essas circunstâncias é que se pode ter esse valor, do qual a ciência veio se alinhando em poder compreender, mesmo que não fosse seu objetivo inicial. Assim, considera-se que uma obra carrega em si suas características materiais: físicas e técnicas sobre suas condições de produção. Por exemplo uma cópia medieval da bíblia. Uma análise do seu valor de autenticidade exige uma investigação tanto pelo tipo de material usado em sua confecção (tinta, papel, couro, etc.) como das técnicas de tradução e caligrafia empenhadas para esconder ou ressaltar as singularidades do monge que a fez.

Em segundo lugar, a noção de Aura é importante para compreender a mudança de valores que ocorreram não sobre a produção, mas no sentido da obra. De fato, o autor impõe um sentido, mas com a compreensão do ser social, que é histórico, pode-se facilmente, e desde os céticos, entender que aquilo que é está para o que serve naquele contexto social. E, uma estatua de Vênus teria um sentido no culto romano, diferente do que tinha para a moral da inquisição que via nessas peças obras profanas e completamente outro do que os turistas de veem hoje ao entrar no museu de Capitolinos. Esse sentido é a aura da obra de arte e nessa era em que estamos, inevitavelmente ele se degrada, uma vez que nem precisamos ir à Itália para ver nada, basta digitar “Vênus de Capitolino” e terá aí uma imagem até mais chamativa do que a própria estátua de mais de 2000 anos. A perda do sentido original, nesse sentido, acompanha a degeneração da aura.

Sem dúvida a reprodução da arte vem culminar na decadência de valores morais de outras épocas e na constituição do ser social, ou o zoopolitkon de Aristóteles, que não é mais do que a determinação da política para a vida de todos os seres humanos. No entanto, esse avanço político se deu orientado para a construção de um espaço mais perfeito que o material. Assim, culminou na produção do espaço tecnológico e virtual. Ele é tido como mais perfeito, pois pode: oferecer em número de objetos/imagens e fixar por tempo muito mais do que qualquer prática concreta. Até a prática de escrever se torna menos cansativa, a escrita e a leitura se tornam mais automáticas com a facilidade de programas de edição de texto.

Seria já muito complexo se as consequências se encerrassem desse modo, mas é necessário desdobrar ainda os meios pelos quais as mudanças da reprodução técnica culminaram no clímax político global que enfrentamos hoje.


Da Fotografia ao Decadentismo dos Sentidos e da Terra

Vamos pensar que a arte é uma forma de reproduzir o mundo e que esteve envolvida com rituais e cultos mágicos em alguns períodos mais do que em outros. As gravuras das cavernas, os versos de Hesíodo sobre a criação da Terra e as pinturas medievais e renascentistas são exemplos de obras de arte que buscaram retratar, cada uma a seu modo, a visão da natureza, do humano e da vida. Até a chegada da fotografia.

A fotografia representa uma mudança radical da forma de percepção sensorial da humanidade. Ela gera vetores, cores, ela gera pontos de fuga e dimensões que nunca podem ser reencontradas na realidade do puro olhar humano, e, no entanto, cria imagens que se multiplicam com uma velocidade da qual nenhuma outra técnica ainda pôde atingir. Permite a difusão de um mundo ficcional, mas muito mais vendável que o habitado.

A realidade fotográfica constitui-se como um paradigma para a modernidade e no que dela se desencadeará: o humano passa a projetar-se para a máquina e não mais para o público. O paradigma teatral é substituído radicalmente aqui. E, disso resultarão muitas consequências para a produção artística, pois o poema não será mais feito para ser recitado, a música prescindirá do encontro de pessoas e a pintura, o teatro e a literatura em um se fundiram: o cinema, que surge como aquilo que fraciona todas as formas de expressão em inumeráveis fotografias.

Mas esse processo de fusão e fracionamento das expressões humanas não resulta em um cenário inócuo. Se nos primórdios o alce era gravado na caverna em busca de trazer força para o grupo de caçadores, ou seja, a natureza era reproduzida para ser domada culturalmente, agora a imagem produzida pela fotografia e o cinema substituem o mundo natural. Ou, pior nos fazem ignorar o mundo, já que saturados pelas imagens virtuais somos facilmente alienados num processo que nos leva ao que hoje chamamos de “bolhas” das redes sociais.

Porém não é somente na proliferação de guetos imaginários que a reprodução técnica levou a humanidade, mas também a destruição como nunca antes vista do planeta que acompanhou direta e indiretamente esse desenvolvimento da reprodução. Consideremos essa condição pois é uma das grandes questões humanas o conflito contra o fim e a finitude. Sobre esse conflito o mundo virtual parece ter levantado promessas e caminhos de solução, mas seu posicionamento parece ainda não ter levantado uma resolução para o mundo concreto e as pessoas que nele são exploradas.


Arte como Prática Política

A arte é a construção de um mundo subjetivo que passa a ser compartilhado. Nossa subjetividade é resultado de um habitus que é dependente de nossa percepção. Assim, construir nossa percepção é um ativo a ser investido de diferentes formas e por diferentes estímulos, e que do contrário leva a decadência de um olhar único. A foto virtual não é mais cópia de outra, mas simulacro do que gostaríamos de ver, uma realidade que agrada aos sentidos e que exclui a estranheza e a inquietação. Será isso o melhor?

Por fim, ainda não é o dia para soluções e reconhecemos que estamos presos, e talvez durante a pandemia pareça mais redundante do que nunca afirmar isso sem parecer menos atual do que em qualquer outro momento. A realidade das telas que não sessam de reproduzir imagens em todos os lugares do mundo é um fato, mas cabe a nós pensar e nos organizarmos sobre isso, do mesmo modo como já foi necessário em outros momentos da humanidade.

Não para espantar a riqueza que o pessimismo traz como meio de investigação, mas para continuar caminhando é necessário estabelecer mais que uma posição concreta, uma posição política, mas uma posição política em prol da vida e diversidade. Concluindo, retoma-se a conclusão de Benjamin que resume a posição apresentada e defendida:

"Fiat ars – pereat mundus" [que a arte se realize, mesmo que o mundo deva perecer], diz o fascismo e, como Marinetti reconhece, espera que a guerra forneça a satisfação artística da percepção dos sentidos alterados pela técnica. Isto é evidentemente, a consumação da "l'art pour l'art” [a arte pela arte]. A humanidade que, outrora, com Homero era um objecto de contemplação para os deuses no Olimpo, é agora objecto de auto contemplação. A sua auto-alienação atingiu um grau tal que lhe permite assistir à sua própria destruição, como a um prazer estético de primeiro plano. É isto o que se passa com a estética da política, praticada pelo fascismo. O comunismo responde-lhe com a politização da arte. (p.21)


George Miguel Thisoteine




REFERÊNCIAS E SUGESTÕES

BENJAMIN, W. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. Aceso em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4179833/mod_resource/content/1/A%20OBRA%20DE%20ARTE%20NA%20ERA%20DE%20SUA%20REPRODUTIBILIDADE%20T%C3%89CNICA.pdf.Último acesso em 06 de jul. de 2020.


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