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“Era barulho o silêncio”: poesia, vácuo de censura e resistência à ditadura militar brasileira.



(...) E era interessante que isso acontece na área da poesia, por que a poesia,

qual censor vai se preocupar com a poesia? Tem mais o que fazer. Tem o

cinema que é uma arte... [não conclui], tem a televisão, que forma opinião,

tem o teatro que mobiliza, que é uma arte pública. E vai pensar em poeta?

Poeta não vai mexer com nada. Então a poesia ficou a salvo da censura e

“tchum”: quando você viu, explodiu. [...] (HOLLANDA, 2014)

Partindo desta fala de Heloísa Buarque de Hollanda, estruturou-se toda uma

problemática envolvendo poesia, resistência e censura, do qual foi parida a monografia de conclusão do curso intitulada Existências resistentes resistências existentes: poesia e

resistência à ditadura militar no Brasil, no curso de História do Centro Universitário

Fundação Santo André.Iniciou-se, então, com a seguinte questão: como se deu a relação entre poesia (publicada durante a ditadura) e o Estado autoritário brasileiro? Foi-se, assim, delimitando o recorte histórico do trabalho. Após a escolha do livro Dentro da noite veloz, de Ferreira




Gullar, publicado em 1975, como fonte, foram analisadas as formas de resistência encontradas nos poemas publicados naquele livro. Ferreira Gullar, poeta maranhense, nasceu em 1930 e morreu em 2016, durante a produção dessa pesquisa. No ano do golpe militar já tinha seu trabalho conhecido, principalmente por ter desintegrado a linguagem em seu livro A luta corporal (1950) e ter criado o movimento Neoconcreto. No início dos anos 1960 integra os Centros Populares de Cultura (CPC), instituição marxista ligada a UNE, que intencionava esclarecer às classes mais baixas sobre a luta de classes, utilizando a arte como meio de comunicação. Ferreira Gullar se filia ao PCB no dia 2 de abril de 1964, precisando exilar-se no início dos anos 1970, por conta de perseguições do Estado e a iminência da morte perante os movimentos anticomunistas existentes durante a ditadura. Considerando a censura que já existia antes do período de 1964 mas que se intensificou com a usurpação do poder pelos militares, a questão primordial foi: Como Ferreira Gullar, através de seus poemas, utiliza a linguagem poética para resistir, ou seja, denunciar e não aceitar, em tempos de silêncio forçado, as relações autoritárias do governo? Fez-se, também, um estudo sobre a maneira como, no livro, se encontram uma série de temas que, tratando da realidade brasileira, desmonta o discurso ufanista que pautava a propaganda oficial durante a década de 1970: a ideia do Brasil-Grande, Brasil-Potência, do “Ame-o ou Deixe-o”.

Para fazer essas discussões e análises, foi utilizada a base teórica sobre literatura e

história que se encontra no livro Literatura e Sociedade, de Antônio Candido. Nela, encontra- se uma reflexão sobre criação literária e como ela está amalgamada com o meio social em que foi produzida, estando impedida de fugir de suas amarras temporais e espaciais (CANDIDO,2014). Em sua obra, o autor discorre que duas questões devem sempre ser feitas e, necessariamente, encontrarem-se: Qual a influência exercida pelo meio social sobre a obra? E qual a influência exercida pela obra de arte sobre o meio? Desta forma, segundo Candido, é possível chegar a uma análise dialética do objeto de estudo. Toda obra de arte (e nesse caso, a obra poética), parte e fala sobre as tensões e dicotomias da época em que foi escrita. Então, sob essa visão, mesmo uma obra que se ambienta num futuro distante, distópico ou utópico, se direciona a questões do momento em que foi produzida: o presente do autor.

Outra obra seminal para compreender a relação entre literatura e história, que faz parte

da espinha dorsal deste trabalho de pesquisa, foi o livro A palavra perplexa: Experiência

histórica e poesia no Brasil nos anos 1970, da historiadora Beatriz Vieira, em que desenvolve a relação específica entre poesia e História, aprofundando a riqueza da utilização de obras literárias (e a poesia, especialmente) como fontes históricas. Segundo Vieira, deve-se levar em consideração o eu-lírico como forma principal de análise dos poemas, pois é através dele que o poeta se expressa e constrói o discurso poético, como é visto no trecho Na composição do gênero lírico, não se encontra propriamente o eu do poeta, mas uma voz em que o eu de todos nós se reconhece, o

mesmo ocorrendo para o tu a quem o eu se dirige, um tu que são todos. (VIEIRA, 2011: 383). Desta maneira, diferenciou-se a pessoa Ferreira Gullar do eu-lírico que atua nos poemas. Como explica Vieira, o poeta não precisa estar doente para escrever sobre a doença ou para citar sua enfermidade. O eu do poema é uma construção, uma criação literária que diz mais sobre o nós como sociedade do que sobre o “eu” como indivíduo poeta, que cria um olhar sensível e provoca. Em certo sentido, é um testemunho que, estetizado, transforma-se em documento para análise. O texto poético, então, adquire um lugar privilegiado para a História e suas formas de pesquisa. Os pensamentos de Antônio Candido e Beatriz Vieira se atravessam na medida em que se aproxima a questão da forma poética, que está intrinsecamente ligada a sua linguagem. Essa distinção estética dos textos em prosa, ou seja, a quebra da frase, o corte das palavras, a intercalação de espaços, todos esses artifícios devem ser levados em consideração quando da análise do objeto, além, claro, da polissemia das palavras e dos neologismos e licenças permitidas a essa linguagem artística.Com isso, e adicionando a visão crítica de literatura e de poesia desenvolvida por Ezra Pound na obra ABC da Literatura, desenvolveu-se o conceito de Artista=Antena, que tenta explicar a forma como os produtores de qualquer tipo de arte estão sempre imersos em seu espaçotempo (POUND, 2006). Assim, transfiguram o real para, colocando em ficção ou em

linguagem criativa, criar discussões e criticar aspectos sociais que atingem a comunidade em que estão inseridos. É através do lugar social que o artista dispõe na sociedade, da maneira como ele enxerga o mundo, que as obras são pensadas e executadas, tendo papel fundamental na construção da sociedade.

Utilizando essas bases teóricas, pode-se analisar o poema “Agosto 1964” que, logo no

título, te posiciona no tempo e te indica em qual momento histórico brasileiro o eu-lírico se expressar. O início do poema, então, se situa, espacialmente, na volta de um trabalhador para a casa, após um dia de trabalho:


Entre lojas de flores e de sapatos, bares,

mercados, butiques, viajo

num ônibus Estrada de Ferro - Leblon.

Volto do trabalho, a noite em meio,

fatigado de mentiras.

(GULLAR, 2013: 31)


Percebe-se, então, a criticidade com que o eu-lírico interpreta esse espaço em que se

encontra e pronuncia esses versos: as mentiras institucionais veiculadas pelos generais para legitimar o golpe de Estado que haviam conseguido dar. Em seguida, lê-se:

Ao peso dos impostos, o verso sufoca,a poesia agora responde a inquérito policial-militar.

(GULLAR, 2013: 31)


Expresso, nesse trecho, temos a representação de uma forma coercitiva policial

aplicada contra os opositores do novo regime, e que cala: pois sufocar é sempre esse ato de não permitir que se fale ou respire. Contando, também, que a meta de quem sufoca é a morte do que está sendo sufocado. O inquérito policial-militar é uma referência bastante pontual e,novamente, te transfere para o tempo e espaço em que foi concebido o poema, pois, como escreve Sônia Regina Mendonça e Virgínia Maria Fontes:

Enquanto ainda se viviam os tumultuados dias da “operação

limpeza” que se seguiu ao golpe, a “legitimidade” baseou-se, tão

somente, no quadro institucional dos chamados Inquéritos

Policial- Militares. Fonte de poder de fato para um grupo de

agentes que configurou o primeiro núcleo do aparato repressivo

em gestação, os IPMs respaldaram o expurgos dos elementos

politicamente ligados ao regime deposto. Era o apogeu do

primeiro ciclo de coerção política[...] (MENDONÇA &

FONTES, 1988: 43)


Assim, percebemos a realidade social entranhada na criação poética, ou seja, Ferreira

Gullar capta um mecanismo institucional do regime, que está na vida secular da sociedade e transfigura esse real, indicando o sufocamento do poema e a poesia sendo inquirida policialmente. Percebe-se também a violência e o autoritarismo com que foi sendo adquirida uma suposta legitimidade social para a sobrevivência do governo. Continuando, no próximo trecho do poema, o eu-lírico se aprofunda nas questões arbitrarias que estavam rondando a vida do brasileiro de oposição:


Digo adeus à ilusão

mas não ao mundo. Mas não à vida,

meu reduto e meu reino.

Do salário injusto,

da punição injusta,

da humilhação, da tortura,

do terror,

retiramos algo e com ele construímos um artefato

(GULLAR, 2013: 31)


Expõe-se aqui, então, uma gama de mecanismos utilizados para inibir as críticas e

levantes, que demonstram mais ainda o caráter autoritário do regime militar. Pode-se entender que esse tipo de denúncia explícita no poema compreende um ato de resistência tanto à Censura instalada no país quanto as ideias ufanistas espalhadas oficialmente pelo regime, que negavam diversas dessas formas inumanas de coerção, como a tortura e o terror. Interessante notar como que, nesse momento mias pungente do poema, a escrita é dura, ríspida, como se recusasse a utilização de metáforas, buscando um tom de denúncia que compete muito mais a escrita informativa do que a escrita poética. A última frase do poema, com seu tom esperançoso, mesmo depois de todas as linhas anteriores serem pesadas e cruéis, demostra essa saída que acontecerá através da luta incessante, da resistência constante. O eu-lírico sugere que é possível construir alicerces de uma sociedade mais justa à partir das crueldades e do que está acontecendo: a completa crença na criação de mecanismos de luta rumo a derrocada do governo. Todas essas análises foram discutidas na primeira parte do trabalho, buscando analisar as existências resistentes do período, ou seja, as lutas, surdas ou explícitas, através da perspectiva da poesia, que se travaram nos anos de 1970 no Brasil, contra o regime autoritário. Observa-se, então, como o poeta absorve as demandas e discussões da sociedade no momento histórico em que se encontra e transmuta vida em arte, produzindo então uma reflexão sobre o tempo vivido. Nesse sentido, os artistas soam como antenas, que captam sinais e os transformam, com intuito de comunicar.A segunda parte analisa as resistências existentes, a reação do regime militar contra a obra de Ferreira Gullar. Segue-se, então, na direção da atuação do Estado contra a obra,através da Censura, que atuava por meio do Departamento de Censura a Diversões Públicas. Essa segunda parte contou com uma dificuldade de pesquisa: Toda documentação do DCDP se encontra no Arquivo Nacional de Brasília e somente uma parte do acervo está disponível on-line para consulta. Com isso foi preciso ir atrás de outras formas de consultar o material.

Através do Livro Repressão e Resistência: censura a livros na ditadura militar, da professora Sandra Reimão, que teve acesso aos documentos que se encontram em Brasília, foi possível obter uma lista de livros censurados durante os anos da ditadura militar. A obra de Ferreira Gullar, publicada em 1975, não se encontrava lá. Causou-se, pois, um desconforto: como essa obra não foi censurada, sendo que tem um discurso anti-ditadura tão pungente e explícito? Como um historiador, então, baseia sua pesquisa num documente nunca produzido?

Vale esclarecer que a Censura no Brasil já existia antes do regime militar, mas não

possuía um viés policialesco. Nesse sentido, era uma profissão, até certo ponto, glamourizada,atraindo intelectuais e pessoas altamente gabaritadas para exercer tal função. Como explica Carlos Fico:


[A censura a diversões públicas] era antiga e legalizada, existindo

desde 1945 e sendo familiar aos produtores de teatro, de cinema, aos

músicos e a outros artistas. Era praticada por funcionários

especialistas (os censores) e por eles defendida com orgulho.

Amparava-se em longa e ainda viva tradição de defesa da moral e dos

bons costumes, cara a diversos setores da sociedade brasileira.

Durante a ditadura houve problemas e contradições entre tais

censuras. A principal foi a penetração da dimensão estritamente

política na censura de costumes — justamente em função da

mencionada vitória da linha dura caracterizada pelo AI-5. Aliás, tal

politização da censura de diversões públicas por vezes transpareceu

a impressão de unicidade das censuras durante o período. (FICO,2004: 37)


Desmontando, então, uma ideia de que a ditadura atuava como um bloco monolítico,

foi possível perceber que haviam alguns pontos-cegos e falhas em suas estruturas. Com essa questão, encontrou-se, nos documentos digitalizados no ANB uma peça de teatro, encenada pelo grupo Em-cena-ação, em 1978 que, basicamente, lia na íntegra alguns poemas escolhidos do livro, e tinha como título da peça o mesmo nome da obra: Dentro a Noite Veloz. Mas ainda havia a dúvida: Como o livro não sofreu nenhum tipo de censura e a peça havia sofrido cortes, reproduzindo o mesmo conteúdo do livro? Como escreve Sandra Reimão:

Em casos como este, em que há uma interdição para exibições

públicas, mas o livro está publicado, ocorre um fenômeno

curioso: algo “que não pode ser visto por platéias adultas

pagando ingresso, está ao alcance de qualquer pessoa que saiba

ler” (REIMÂO, 2011: 35)


Isto leva a pensar que, então, a incongruência esteja estabelecida no interior da

Censura Federal, na sua aplicação e na forma com que era dirigida. Essa dúvida permaneceu como questão principal. Então, pôde-se entrar em contato com um documento emitido pelo diretor do DCDP ao Ministro da Justiça que, numa ocasião de protestos contra a censura, movidos por escritores, músicos e aristas em geral, faz um balanço das atividades censórias do ano de 1976. Nesse documento, encontra-se a referência ao departamento de censura à livros, em que se esclarece que as análises censórias a esse tipo de produção se davam, apenas, através de denúncias. Macyr Coelho, diretor da Policia Federal, descreve, então:

Quanto a livros, convém esclarecer, de logo, que este Departamento só manda verificar aqueles remetidos pelos órgãos descentralizados, em decorrência de solicitações recebidas, nas respectivas áreas, de pais, professores, livreiros ou autoridades locais, que ao perceberem inconveniências em algumas obras, no tocante à moral e aos bons

costumes, reclamam providência de autoridade, já que seria impossível programar verificação de toda a produção literária posta em circulação no Brasil.(REIMÂO, 2011: 159) Nesse sentido, nenhum livro publicado passou por censura prévia obrigatória, como acontecia com o teatro, o cinema, os jornais e a TV. A professora Sandra Reimão, em sua obra já citada, argumenta que, por conta do chamado “milagre econômico brasileiro”, a produção de livros no Brasil aumentou exponencialmente, e a Polícia Federal e o DCDP não tinham um contingente de censores suficiente para que todos os livros publicados passassem pelo crivo da censura prévia (REIMÂO, 2011).

A partir disso, retorna-se para a fala de Heloísa Buarque de Hollanda, e pode-se

interpretar que a censura atuou de maneira diferente para livros em relação ao procedimento seguido para obras teatrais, cinematográficas, televisivas e jornalísticas. Com essa diferenciação, foi possível manter uma discussão e expressões resistentes nas obras literárias e, mais ainda, nas obras poéticas, pois o silêncio que agonizava os outros tipos de arte conseguiu voz nos livros, e essa fala teve uma verve explosiva na poesia, que conseguiu atuar nesse vácuo de censura formado.

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- Marcus Vinicius dos Santos Cardoso - Licenciado e Bacharel em História pelo Centro Universitário Fundação Santo André, mestrando pelo Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo.



Referências Bibliográficas

CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. 13ª ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul,

2014.

FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. São Paulo:

ANPUH/Humanitas, 2004.

GULLAR, Ferreira. Dentro da noite veloz. 6ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.

HELOÍSA BUARQUE DE HOLLANDA – OCUPAÇÃO ZUZU (2014) – Parte 1/4.

Produção Audiovisual: Jahitza Balaniuk. Vídeo: André Seiti. Edição: Rodrigo Lorenzetti. São Paulo: Itaú Cultural, 2014. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=a2juB5ncQvg> Acesso em: 14/04/2016.

MENDONÇA, Sonia Regina de; FONTES, Virginia Maria. História do Brasil Recente:

1964-1980. São Paulo: Ática, 1988. (Série Princípios)

Peça Teatral Dentro Da Noite Veloz – Dossiê de documentos. Identificação: BR RJANRIO

POUND, Ezra. ABC da Literatura. Tradução de Haroldo de Campos e José Paulo Paes. 16ª

ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

REIMÃO, Sandra. Repressão e Resistência: Censura a Livros na Ditadura Militar. São

Paulo: EDUSP/ FAPESP, 2011.

VIEIRA, Beatriz. A palavra perplexa: Experiência histórica e poesia no Brasil nos anos

1970. 1. São Paulo: Hucitec, 2011.

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