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O Que é Saúde Mental?



Aqui no Instituto Sarath compreendemos que saúde mental é um tema permanente. Estamos sempre preocupados com saúde mental e parte significante de nossas atividades focam diretamente em promoção, prevenção e informação em saúde; embora todas as nossas atividades direta ou indiretamente estejam sempre relacionadas ao tema. O Setembro Amarelo, campanha de prevenção ao suicídio, no entanto, nos convida a refletir mais profundamente sobre o tema e a falar sobre ele de maneiras diferentes, indo além do que se fala cotidianamente.

Pensando em aproveitar a data, quero iniciar aqui uma série de três textos sobre saúde mental, em uma perspectiva abrangente. A campanha se relaciona com o tema na medida em que parte significante dos estudos aponta que no mínimo 90% (até 96,8%)[1]; [2] das pessoas que morreram por suicídio da metade do século passado até agora sofriam com algum tipo de diagnóstico de transtorno mental, sendo depressão o mais prevalente. Sem querer estabelecer uma relação absoluta entre suicídio e saúde mental, que seria imprudente e contribuiria ainda mais para o tabu que existe em torno de ambas, ir à fundo ao discutir o tema do suicídio me parece exigir falar sobre saúde mental e, ir à fundo na discussão sobre saúde mental, exige falar de seus determinantes, que na maior parte estão relacionadas à fatores socioeconômicos, desrespeito de direitos fundamentais; desrespeito à diversidade, entre outros fatores, que também são fatores de influência para o suicídio.

Ao mesmo tempo, sinto que se fala de saúde mental em termos genéricos demais, individuais demais, de maneira abstrata, as vezes complexa. Eu gostaria de falar sobre saúde mental de um jeito simples, com algumas ideias que nos permitirão olhar para o mundo, para outras pessoas, para nós mesmos, e entender mais facilmente como saúde mental se relaciona com tudo isso, e como ajudar outras pessoas, como perceber riscos em instituições, e como perceber em nós mesmos coisas que são difíceis de colocar em palavras ou de relacionar com contextos maiores; ou seja, aplicar tudo isso que falaremos em nossas vidas de um jeito prático. Farei algumas perguntas ao final de cada texto para estimular isso!

Os três textos discutirão:

  1. “o que é saúde mental” (este texto), fazendo algumas distinções, debatendo algumas concepções comuns, e inserindo algumas ressalvas que mostram certa complexidade do tema;

  2. “como pensar em saúde mental de um jeito simples”, buscando selecionar algumas categorias gerais que nos ajudam a entender o que é que mais significantemente está relacionado com saúde mental;

  3. “saúde mental e diversidade”, simplificando ainda mais e mostrando como todas as categorias anteriores têm a ver com esse conceito que me é fundamental, mostrando que diversidade é central para pensar saúde mental em diversas esferas, e como arte e cultura são veículos poderosos para viabilizar tudo isso

Começamos então com: “o que é saúde mental”?

Essa pergunta parece fácil, mas na verdade é complexa e tem várias implicações. Falamos cotidianamente em “saúde mental”, mas definir é um grande trabalho pois, sempre que o tentamos, deixamos alguma coisa de fora. Essa dificuldade também existe para a definição de “saúde” e, na prática, a diferença entre “saúde” no geral e “saúde mental” em específico é que ainda somos influenciados por uma cisão entre “corpo” e “mente” de maneira que saúde mental se refere a um conjunto de fatores que aparentemente têm menos relação com o corpo e dependeriam mais de fatores sociais, psicológicos, espirituais; como emoções, comportamento e pensamento. É uma separação muitas vezes didática, pois a concepção de saúde que defendemos é integral. Portanto, quero começar pensando em saúde em si, no geral, pois esse entendimento nos ajudará a pensar o que é saúde mental em específico.

O que é saúde? Até 1948 a Organização Mundial da Saúde (OMS) utilizava a ausência de doença como definição, mas sabemos que não ter um diagnóstico não implica em estar ou não saudável (o mesmo vale para saúde mental); existe alguém completamente livre de alguma doença? Como é possível definir algo a partir do que esse algo não é, a partir da ausência? A OMS então adotou a noção de “completo bem-estar físico, mental e social”, não mais meramente a ausência de alguma doença. Mas problemas continuam pois o que seria esse completo bem-estar? Evidentemente ele implica em um modelo no qual todos concordam ser o padrão mais elevado de bem-estar, de saúde, para o qual todos devem se direcionar em alguma medida.

Essas noções, embora úteis em alguma medida, geram muitos problemas, em especial para saúde mental, na medida em que entender desvios de um modelo como problemas de saúde mental serviu de justificativa para abusos de poder em diversos lugares do mundo, e uma das concepções de saúde mental que vimos em nossa história e que existe até hoje é a de entender problemas de saúde mental justamente como desvios morais, como em achar que pessoas que sofrem com sintomas depressivos ou ansiosos são preguiçosos ou não têm fé ou força de vontade.

E se os desvios de padrões de comportamento, emoções e pensamentos forem, por mais sofridos que sejam, não problemas de saúde, mas reações apropriadas aos seus contextos, por exemplo, de histórias de violências sofridas, de injustiças, desigualdades? Não existe resposta fácil, mas nós como sociedade fizemos questão de escolher as respostas mais erradas, tratando esses desvios de maneiras absurdas, ora como um problema policial e prendendo injustamente pessoas, ora tratando como um problema de saúde e igualmente prendendo pessoas, como em manicômios.

Talvez exista um caminho mais fácil para essas questões e mais coerente com a realidade, que é o de pensar para além dos diagnósticos, para além de modelos concretos ou hipotéticos, observando os comportamentos das pessoas, o que elas relatam sentir em comum, e o que é que em suas vidas está relacionado com esses comportamentos e sentimentos. Em outras palavras, o que é que de fato faz com que as pessoas sofram de maneira significativa a ponto de influenciar significantemente seus padrões de comportamento?

Ao atentarmos para o que as pesquisas cientificas nos mostram sobre fatores de risco e determinantes da saúde mental, veremos desigualdade social[3] como um dos principais fatores, incluindo também racismo[4], estigmas de diversos tipos[5], desvios nos padrões heteronormativos[6], entre outros, de maneira que quanto mais vulnerável a esses fatores as pessoas estão, mais risco elas têm de sofrerem com questões relacionadas à saúde mental. Evidentemente, não são somente esses os determinantes para riscos do adoecimento mental, existem outros (pretendo falar no próximo texto! Quais outros você pensa? Deixe um comentário!). Pessoas de todas as classes e condições socioeconômicas podem adoecer e todos nós em alguma medida estamos sujeitos a termos, pelo menos, durante alguns períodos, sintomas depressivos ou de ansiedades (o que não necessariamente implica em diagnóstico psiquiátrico). Buscaremos construir uma maneira de sintetizar esses fatores no nosso próximo texto, mas a ideia aqui é mostrar que é possível compreender saúde mental a partir desses determinantes, ou seja, saúde mental como um produto histórico e social que dependem de como esses fatores incidem sobre as pessoas.

Dessa maneira, também podemos demonstrar que a discussão sobre saúde mental não se reduz às nossas emoções, estarmos felizes ou tristes, por exemplo. Ter saúde mental não significa estar feliz sempre ou na maior parte do tempo. A felicidade, o sofrimento, a tristeza, são questões que preocupam a humanidade desde sempre, fazem parte da nossa existência, da experiência de ser humano, e esses sentimentos nos mobilizam de diversas maneiras para viver, fazer coisas, nos relacionarmos. A saúde mental está mais relacionada a impactos e prejuízos nesses fatores acima mencionados, impactos significativos que alteram nossos padrões emocionais, de maneira a prejudicar ou incapacitar significantemente a nossa vida cotidiana (o que depende de como cada pessoa vive).

Temos um exemplo notável no Brasil que é produto da luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica. A 8º Conferência Nacional de Saúde (1986) define:

“saúde é resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde [...] resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida”.

Acredito que essa definição também é apropriada para pensar saúde mental, ela não se fundamenta em modelos abstratos, sua compreensão aponta para princípios e recursos básicos, fundamentais e materiais que definem positivamente o que é saúde (ou seja, não definem pela negativa, como “ter saúde é não ter doença”).

Por depender desses diversos fatores e de como as pessoas levam suas vidas de maneiras particulares, pode-se entender que Saúde mental é um processo que se refere à relação das pessoas com o mundo e consigo mesmas e, portanto, variada, se manifestando de uma maneira particular. É plenamente possível que o que é saudável para um, não o seja para outro! Fica ainda mais interessante a discussão quando consideramos o fato de que não somos a mesma pessoa sempre, mudamos ao longo do tempo. E apesar das mais variadas adversidades que encontramos ao longo da vida, a resistência, a luta, a indignação, relações de solidariedade e apoio, entre muitas outras são todas maneiras importantes de se lidar com esses riscos e de ganhar força para resistir a tudo aquilo que afeta negativamente nossa saúde mental.

O Setembro Amarelo

Críticas feitas a campanhas como o Setembro Amarelo, por exemplo, passam por essa discussão, na medida em que frequentemente se apoiam em modelos de saúde mental bem definidos, focando primeiro nos diagnósticos e não nos contextos de vida que estão influenciando diretamente o risco de suicídio. Também fazem um discurso focado individualmente, em tipos de pessoas, como se a prevenção ou solução para o suicídio fosse simples como a do slogan “falar é a melhor solução” ou fazer um tratamento psiquiátrico. Essas são todas intervenções importantíssimas e de fato falar, na grande maioria das vezes, é o que pode salvar uma pessoa; mas o que a levou considerar o suicídio em primeiro lugar? E o que a levou ao adoecimento a ponto de precisar de tratamento? E, se ela precisa falar sobre isso agora, em alguma medida ela não deixou de ser escutada anteriormente em questões fundamentais? Se desejamos cuidar da saúde mental das pessoas e diminuir os números de suicídio, não deveríamos estar focando nisso também?

Suicídio e adoecimento mental não são só questões individuais, questões de quem sofre, que conseguiremos “arrumar” com aumento do consumo de antidepressivos, por exemplo, por mais importantes que sejam. São questões centrais da nossa comunidade, da sociedade como um todo, que deve ser perguntar que tipo de vida, de relações, exclusões, preconceitos, injustiças, distribuição de recursos, entre outros, estamos mantendo, produzindo ativamente, de maneira a implicar no sofrimento de tantas pessoas, no nosso sofrimento, no sofrimento das pessoas que amamos.

Em resumo


Percebe-se como então saúde mental se relaciona profundamente com nossas condições e períodos históricos (pessoais e coletivos) e como é difícil estabelecer qualquer padrão ou modelo de saúde mental, ou explicações e fórmulas seguras sobre como ter saúde mental ou algo do tipo. Sofrimento e adoecimento mental nunca foram eliminados porque, em algum sentido, fazem parte da estrutura social, e muitas vezes, são respostas coerentes com a nossa realidade (biológica, política e social), exigindo mudanças concretas nessa realidade e não só mudanças individuais, muito embora sujeitos particulares possam enfrentar isso de diferentes maneiras e existem maneiras de se ajudar com isso e aliviar muitos sofrimentos e encontrar sentido e prazer na vida.

Definir saúde mental como um estado fixo que todos devem almejar é, além de incoerente com a realidade, prejudicial, na medida em que padroniza ou impõe uma expectativa de como as pessoas devem viver e essa contradição dificulta ou impede que as pessoas vivam à suas maneiras, contribuindo para o processo de adoecimento. Nesse sentido, saúde mental se relaciona profundamente com liberdade, equidade, inclusão e diversidade, respeitando variadas formas de viver.

Parece complexo então dar sentido para tantas variáveis, tantos fatores que influenciam a saúde mental, porém, apesar de resistir a qualquer tentativa de uniformização ou padronização, existem maneiras de simplificar todos esses fatores e pensar em saúde mental de um jeito simples e prático, identificando em nossas vidas e em nossos contextos aquilo que contribui ou não para nossa saúde mental. Veremos isso em nosso próximo texto!

Para encerrar, quero deixar duas perguntas para estimular uma reflexão. Comentem abaixo o que vocês pensam sobre elas ou sobre qualquer coisa que escrevi aqui (discordem e critiquem também se for o caso!):

  1. O que é saúde mental para VOCÊ, ou seja, como você sente e entende saúde mental em sua própria vida?

  2. Quais fatores influenciam mais significantemente na saúde mental?

  3. Se vocês tivessem poder absoluto para mudar qualquer coisa no Brasil, que mudanças fariam para influenciar positivamente na saúde mental da população (politicamente, socialmente, economicamente, ou em qualquer outra esfera)?



Texto por: Victor Henrique Souza Cunha

 

[1] ARSENAULT-LAPIERRE, Geneviève; KIM, Caroline; TURECKI, Gustavo, Psychiatric diagnoses in 3275 suicides: a meta-analysis, BMC psychiatry, v. 4, p. 37, 2004; BERTOLOTE, José Manoel; FLEISCHMANN, Alexandra, Suicide and psychiatric diagnosis: a worldwide perspective, World psychiatry: official journal of the World Psychiatric Association (WPA), v. 1, n. 3, p. 181–185, 2002. [2] Essa é uma estatística comum, mas discutível, pois exige atribuir confiança imensa nos critérios diagnósticos. Além disso, igualar saúde mental à ausência de diagnósticos ou algo do tipo é também bem discutível, mas exigiria outro texto. Para uma visão contestadora sobre, ver seguinte artigo: Hjelmeland, H., & Knizek, B. L. (2017). Suicide and mental disorders: A discourse of politics, power, and vested interests. Death Studies, 41(8), 481–492. [3] ALLEN, Jessica et al, Social determinants of mental health, International Review of Psychiatry, v. 26, n. 4, p. 392–407, 2014. [4] WILLIAMS, David R.; WILLIAMS-MORRIS, Ruth, Racism and Mental Health: The African American experience, Ethnicity & Health, v. 5, n. 3–4, p. 243–268, 2000. [5] DÍAZ, R M et al, The impact of homophobia, poverty, and racism on the mental health of gay and bisexual Latino men: findings from 3 US cities., American Journal of Public Health, v. 91, n. 6, p. 927–932, 2001. [6] MEYER, Ilan H., Prejudice, Social Stress, and Mental Health in Lesbian, Gay, and Bisexual Populations: Conceptual Issues and Research Evidence, Psychological bulletin, v. 129, n. 5, p. 674–697, 2003.

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